sábado, 24 de maio de 2008

(...) E desgraçada da sociedade com aspirações a democrática que, para viver decentemente, para conservar-se moralizada, para desenvolver sua cultura, para manter sua religião, não disponha de outros meios de conservação e desenvolvimento desses valores morais, intelectuais, estéticos, religiosos, senão o braço forte do gendarme e o lápis vermelho do censor.

(Gilberto Freyre)

Literatura Infantil: um texto feito para crianças?

Por Márcia Oliveira

Sabemos que este blog procura falar especificamente de Literatura Infantil, uma Literatura feita por crianças e para crianças, certo? Errado!


Os textos clássicos ditos "infantis" possuem hoje, de fato, uma linguagem direcionada para o público infantil, mas o que pouca gente sabe é que a maioria desses textos não foi escrita exclusivamente para crianças e tão pouco produzida por elas.


Já na Idade Média existia Literatura. Os contos e aventuras envolvendo princesas, heróis e cavaleiros saíam da imaginação de adultos e eram contados (oralmente) em grandes rodas literárias que mesclavam gente pequena e gente grande. Não havia um direcionamento específico à criança e nem mesmo uma preocupação pedagógico- moralizante em relação aos conteúdos.


A primeira versão popular do conto A Bela Adormecida, uma versão difundida no século XIV, trazia uma Bela que fazia amor com o príncipe e engravidava de gêmeos enquanto dormia, ou seja, sem ter a menor consciência de nenhum dos dois fatos. Esta versão foi fortemente censurada pela Igreja Católica no século XVII que, como instituição de maior poder ideológico da época, julgava (e ainda julga) ser o ato da concepção um ato sagrado de perpetuação da espécie e que, portanto, deve ser realizado de forma consciente.


Com a ascenção política e social da burguesia (século XVIII), a Literatura passou a direcionar alguns textos exclusivamente aos pequenos. A criança desta época já era vista como público-alvo-consumidor e deveria ser mantida em seu lugar na sociedade, ou seja, na ESCOLA. Um lugar que, como todos nós sabemos, reproduz toda a ideologia do sistema burguês que compreende também a igreja e a família. A trilogia da criança do século XVIII, ao contrário de Harry Potter e O Senhor dos Anéis, era: igreja-família-escola.


Foi neste período, entre os séculos XVII e XVIII, que começaram a ter grande destaque na Literatura os adaptadores. A adaptação nada mais é do que uma espécie de eufemismo, de substituição. O adaptador substitui o que não pode ser lido (por determinado público) pelo o que pode ser lido. Tudo com base no contexto ideológico da ordem político-social vigente em sua época. Ele é, na verdade, um sujeito histórico de seu tempo. Deve conhecer bem as necessidades e indagações de seu público e procurar respondê-las sem quebrar "a ordem e os bons costumes do texto".


Podemos dizer, sem medo de possíveis repressões, que o adaptador é, na verdade, um censor. A adaptação não se relaciona somente à linguagem do texto, mas principalmente ao seu caráter pedagógico-moralizante. Toda a ideologia burguesa contida nos Contos de Fadas e em outros textos clássicos infantis é fruto do trabalho de adaptadores reprodutores deste sistema.


Um dos primeiros adaptadores de textos para crianças de que se tem notícia é o francês Charles Perrault. No século XVII, Perrault coleta alguns contos e lendas da Idade Média e adapta-os, constituindo os chamados Contos de Fadas (Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, A bela Adormecida). No entanto, Perrault fazia isso sem se preocupar muito com um dos dois maiores pontos de preocupação da Literatura Infantil: a sua relação com o POPULAR e com o PEDAGÓGICO. Perrault demonstra ter se importado apenas em fazer uma arte moralizante através de uma Literatura essencialmente pedagógica. Suas adaptações tentam, na verdade, mascarar os detalhes que correspondem ao gosto do público para qual ele realmente destina seus textos: a BURGUESIA.


Em Cinderela, por exemplo, a jovem inicia a história de forma precária, parte da vida simples e popular para a vida não-popular; para o nobre e aristocrático. Começa pobre, mas depois triunfa no final, num verdadeiro estereótipo burguês, e aí observamos referências à moda feminina, ao luxo, ao requinte, características que denotam a mulher burguesa.Sem falar na forte referência ao casamento como ascenção social, o ápice sócio-burguês.
Em Chapeuzinho Vermelho,encontramos um austero caráter de advertência, o melhor retrato da pedagogia moral de Perrault. Chapeuzinho é punida por desobececer, ensinando que a criança que desobedece "a ordem" ou aos adultos será sempre castigada por isso. Em sua primeira versão (censurada), o conto da Chapeuzinho era repleto de conotações sexuais e de referências ao canibalismo, prática de algumas tribos indígenas que acreditavam que, ao comer um indivíduo, poderiam atribuir para si suas virtudes.


De muitos dos contos de fadas que conhecemos hoje, não se sabe a verdadeira autoria, sabe-se apenas a autoria da adaptação, e foi só depois de passarem pelas mãos censoras e pelo lápis vermelho de um adaptador adulto que se tornaram clássicos infantis.


O papel do adaptador é mesmo muito relevante. talvez de maior relevância que o papel do próprio autor. Não podemos abrir mão de conhecer os processos de adaptação. Ter conhecimento sobre isso é uma maneira de conhecer a forma como essas obras literárias estão sendo produzidas e direcionadas a um jovem leitor, um leitor ainda em formação. É necessário aos educadores ter uma visão crítica e realista em relação à adaptação, pois ela pode ser o ponto de partida para a formação de um futuro leitor crítico (ou não).



Márcia Oliveira.