Agora, saindo um pouco das historinhas de mentirinha e entrando nas historinhas de verdade, acho importante discutirmos sobre o que é a Literatura Infantil e quais seus objetivos desde a sua origem até os nossos dias.
Desde a Idade Média já havia Literatura Infantil. É sabido que naquele tempo a infância era algo um tanto quanto diferente do que concebemos hoje. As crianças não possuíam espaços exclusivamente para elas e, muitas vezes, levavam uma vida de adulto, trabalhando arduamente nas lavouras de uma sociedade até então eminentemente agrária. Mas, as histórias de heróis e cavaleiros fortemente vestidos com armaduras fascinavam não só crianças, mas adultos também. E detalhe: ainda não haviam inventado o livro. As histórias eram contadas oralmente, o que nos leva a afirmar que a Literatura Infantil, na verdade, é anterior ao livro infantil.
Com a Revolução Industrial e a ascenção da burguesia européia, sentiu-se a necessidade de ampliar a produção e controlar as massas. As crianças saíram das indústrias, o trabalho infantil fora abolido. Agora, entendia-se que o público infantil também era consumidor em potencial e precisava ser educado para tal. A escola passou a ter um papel social mais importante, um papel social pedagógico.
É nesse contexto que surge a Literatura Infantil. O livro didático ou o livro de histórias infantis tem um aspecto expressivamente pedagógico. Não é difícil percebermos que os clássicos da Literatura Infantil seguem sempre a mesma linha pedagógica: "criança, seja boazinha; não desobedeça os pais; estude; seja cristã".
No Brasil não foi muito diferente. Nossa Literatura para crianças até os anos 70 fora sempre voltada para a moral e os bons costumes. Somente a partir da década de 70 com Monteiro Lobato é que passamos a conhecer uma Literatura Infantil voltada para a criança e para valores sociais, culturais e, sobretudo, humanos.
Quem não se lembra do famoso Sítio do Pica-Pau Amarelo e de suas personagens mais divertidas? Pedrinho, Narizinho, Emília, Dona Benta, Visconde, Tia Anastácia? Personagens que ensinaram às crianças daquela geração a se tornarem adultos mais inteligentes e confiantes.
Monteiro Lobato soube traduzir como ninguém as perípécias do universo infantil. Um homem que cedo percebeu que a sociedade adulta estava perdida em se tratando de valores, e decidiu apostar tudo nas crianças, pois elas eram o futuro da nação.
Suas personagens são originais e transmitem às crianças valores diferentes dos da Literatura Infantil tradicional. Pedrinho e Narizinho são crianças livres, moram em um sítio cheio de aventuras, precisam ser espertas para escapar dos perigos que enfrentam. Aliás, a palavra de ordem em Lobato é a esperteza. A começar por Emília, uma boneca de pano que, como toda boneca, deveria ser manipulada pela dona, no caso a menina Narizinho. Porém, Emília é muito esperta, ela é quem manipula Narizinho e todas as personagens do Sítio. Em muitos momentos, percebemos na bonequinha até uma certa arrogância, um pedantismo típico da Sra. Marquesa de Rabicó.
Visconde de Sabugosa, o intelectual; Saci Pererê, o folclore brasileiro; Cuca, o sinistro da imaginação infantil. Todas são personagens que traduzem muito bem o imaginário da criança e o imaginário popular.
Lobato, ao contrário de outros autores infantis, sempre fez questão de retratar a sociedade e a cultura brasileira em sua obra. Nosso folclore, nossa cultura e crenças religiosas, nossa sociedade. Ninguém conseguiu ser tão bom criador de sociedades quanto ele. O Sítio do Pica-Pau amarelo é um ambiente repleto de sociedades.
Engana-se quem pensa que a Literatura Infantil constitui-se apenas de livros escritos para as crianças. É sabido que muitos textos hoje considerados infantis nunca foram escritos para o público infantil. Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, por exemplo, é a prova disto. Carrol chegou a ser acusado de pedofilia pelo texto. As aventuras de heróis e as novelas de Cavalaria também não eram eminentemente infantis, mas agradavam aos adultos e às crianças, que possuem subjetividades diferentes, mas isso não quer dizer que, de vez em quando, o adulto não liberte a criança que tem dentro de si. Para isso também é que existe uma coisa chamada: adaptação. Textos como o de Lewis Carrol; O Pequeno Príncipe, de Saint Exupéry e alguns contos de fadas foram adaptados para o mundo das letras infantis. O papel do adaptador chega a ser mais importante que o do próprio autor.
Lembro de minha mãe contando que já adolescente assistia ao Sítio do Pica-Pau Amarelo, não só ela, mas toda a sua família parava diante da Tv para assistir aos episódios da série infantil. Eu mesma, também na adolescência, cheguei a ver algumas reprises num canal público de Tv e percebi o quanto deviam ter sido bons aqueles tempos. As crianças criadas pelas travessuras de Emília, Pedrinho, Narizinho e cia certamente souberam aproveitar mais da vida e da meninice do que nós, que fomos criados pela insípida turma da Xuxa.